domingo, 6 de novembro de 2011

"Procedimentos, em Gilles Deleuze: Proust, Sade, Sacher-Masoch, Klossowski, Kafka e Bacon"

[Fragmentos do texto constitutivo de uma das Sessões Temáticas do "I Colóquio Nacional Pensamento da Diferença: Escrileituras em meio à vida".]

Do procedimento de produção de signos/violência (Proust)

* O que aflige Proust? A infância significada (no sentido de que é preciso reinventar a infância para que essa se torne matéria de escrita).

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Considera a memória que guarda sobre a sua infância; (2) Escolhe um pequeno detalhe, um pormenor: a lembrança da degustação de um bolinho mergulhado numa xícara de chá (PROUST, 1967); (3) Dispara a sua escrita a partir da violência provocada pela sensação de tal degustação; (4) Reinventa a sua infância.

Do procedimento de instituição e aceleração (Sade)

* O que aflige Sade? Os valores morais e religiosos.

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Concebe os valores morais e religiosos como pertencentes a uma natureza segunda (natureza grosseira, ordinária, humana); (2) Institui uma sociedade de libertinos, regida por um modelo de ação livre; (3) Debocha da natureza segunda; mostra o quão ridículo são os preconceitos; mostra que há valores por toda parte, mas que a verdadeira natureza está acima deles; defende que toda lei humana contraria a verdadeira natureza e que, por isso, só merece desprezo; (4) De imediato, institui a verdadeira natureza (natureza primeira); pressupõe que as suas vítimas nada sabem sobre ela, limitando-se apenas à outra; (5) Nega e destrói a natureza segunda a partir da violência, da perversão dos valores; considera que a sua vítima deve destruir a segunda natureza para transcender à primeira (livre dos valores, em revolução permanente); considera a destruição uma das primeiras leis da natureza, e que, por isso, deve ser concebida não como uma prática criminosa, mas como uma necessidade natural; (6) Mostra, exibe os seus atos de perversão, porque acredita que uma dor “provocada na natureza segunda, poderia de direito se repercutir e se reproduzir ao infinito na natureza primeira” (DELEUZE, 1983, p. 31); (7) Sente prazer na demonstração; por isso, repete as suas cenas de forma exaustiva; (8) Acelera; opera a cena num ritmo absurdo (comparado ao dito normal), fazendo da aceleração um procedimento que “se faz pela multiplicação das vítimas e das suas dores” (ibidem).

Do procedimento de denegação e suspensão (Sacher-Masoch)

* O que aflige Sacher-Masoch? A sociedade patriarcal.

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Concebe as funções familiares, sobretudo, a função paterna e a conjugalidade, como sendo criações do homem, incluindo a função da mulher; (2) Escolhe uma mulher para casar-se; convence-a a assinar um contrato que a obriga a fazê-lo seu escravo; (3) Passa a educá-la; convence-a a agir, para com ele, com frieza e crueldade; (4) Faz de tudo para que ela cumpra o contrato assinado; (5) Faz dessa uma mulher livre de sua função estabelecida pela sociedade patriarcal (afinal, a função dita normal da mulher não implica o fato de ela ter que espancar o seu marido); (6) Transforma essa mulher numa mulher Ideal, de modo que se apaixona por ela; (7) Aproveita-se do fato, de ela ter sido educada para ser fria a cruel, para não ter a menor chance de ter o acesso que, tradicionalmente, o marido tem em relação à sua mulher; (8) Passa a sofrer (o contrato inclui uma cláusula que deixa claro que se trata de um dever da mulher-carrasco se dar a outros homens); (9) Empreende “a arte do suspense” (DELEUZE, 1983, p. 38), pois a dor do sofrimento é apenas uma condição para que o prazer seja retardado ao máximo; (10) Apesar do sofrimento, passa a ver a possibilidade de também transformar a sua função; (11) Uma vez livre da lógica da função patriarcal, renasce.

Do procedimento de dissolução do Eu (Klossowski)

* O que aflige Kossowski? As determinações; sobretudo, a determinação pessoal (o Eu).

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Acredita que a grande pornografia esteja na dissolução da identidade pessoal; (2) Elabora um personagem (Octave) que deseja experimentar a sua esposa (Roberte) em “estado” de indeterminação; (3) Esse personagem instaura a lei da hospitalidade, cujo conteúdo comporta o oferecimento de sua esposa, Roberte, a todos os seus hóspedes (KLOSSOWSKI, 2001b); (4) Transforma-se em voyeur; (5) Assim, multiplica a essência de Roberte (entendida como as infinitas forças que compõem aquela composição que, por comodidade, chamamos por um nome próprio), para conhecê-la cada vez mais (quantitativamente) e melhor (qualitativamente), seguramente bem mais e bem melhor do que se a guardasse simplificada para ele mesmo, a conhecendo de um só modo, e de um modo muito triste, visto que quando se tem apenas um, esse tende a ter que suprir determinadas expectativas; (6) Joga Roberte para a indeterminação, visto que já não pode reconhecê-la.

Do procedimento de substituição e despersonalização (Kafka)

I


* O que aflige Kafka? A família e a relação conjugal.

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Convence Felícia a escrever pelos menos duas cartas destinadas a ele por dia; (2) Pelo fluxo contínuo de cartas, consegue evitar a aproximação pessoal, a qual poderia desencadear a relação conjugal entre eles; (3) Impede que as relações estabelecidas da família e da conjugalidade se instalem em sua vida; (4) Assim, substitui o tradicional contrato conjugal por um pacto diabólico.

II

* O que aflige Kafka? Os papéis determinados, os segmentos duros, as leis.

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Cria as personagens jovens; (2) Faz com que essas funcionem encontrando as saídas, as brechas que todo segmento social deixa; (3) Elas indicam essas brechas aos personagens principais, os quais se apresentam vivendo no limite dos segmentos; (4) Tudo muda quando eles se deparam com as jovens, as quais os fazem perceber que todo campo social, apesar de segmentado, é um fluxo contínuo, bastando achar os conectores; (5) Uma vez redimensionado o segmento, os personagens principais também se redimensionam; conectam-se com segmentos inimagináveis até então, ficando perdidos, agoniados e, momentaneamente, despersonalizados.

Do procedimento de deformação (Bacon)

* O que aflige Bacon? As ilustrações e as figurações.

* Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.

* Uma vez apropriando-se, como procede? (1) “Distingue na sua pintura três elementos fundamentais: a estrutura material, a área redonda-contorno e a imagem” (DELUEZE, 2007, p. 15); (2) Expressa o primeiro elemento com grandes superfícies planas, as quais não funcionam como paisagens: não as coloca embaixo da Figura, mas no mesmo nível do que essas; (3) Faz do segundo o limite comum entre os outros dois elementos; isola a imagem de tal modo que ela não seja forçada a imobilizar-se; (4) Expressa o terceiro de um modo que a imagem se faça Figura e não figuração.

[O texto, na íntegra, será publicado no Caderno do Colóquio - http://difobservatorio2010.blogspot.com - ]

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